Ruben Siqueira*
Eles produzem 65% do pescado no Brasil, mas não são prioridade na política de pesca. Depois de duas Conferências Nacionais da Aquicultura e Pesca, em que foram mera presença legitimadora do privilégio dado à pesca e à aqüicultura empresariais, sem verem seus interesses contemplados na prática, eles resolveram fazer sua própria conferência. No estacionamento do estádio Mané Garrincha, em Brasília, superando dificuldades de todo tipo, perto de mil pescadores artesanais armaram acampamento, de
O contraste entre os dois eventos, muito ilustrativo, saltava aos olhos. Do lado de cá, precariedade; do lado de lá, suntuosidade. Lá, um belo catamarã e um moderno barco de fiscalização; cá uma jangada cearense mais simbólica que real. Lá peixes ornamentais em piscinas climatizadas; cá um dourado do rio São Francisco em papel machê e rede surrada de pesca "cercando" o acampamento. De lá, sisudez e arrogância explícita; de cá, simplicidade, alegria, solidariedade. Uma pretensiosa elegância nas vestes pode ser notada até nos pescadores que vieram de lá visitar os de cá, a tiracolo a bolsa ornamentada de couro de tilápia colorido. Inevitável constrangimento: "o que vocês está fazendo lá, seu lugar é aqui"... O ar condicionado do hotel cinco estrelas e do Centro de Convenções deve ter facilitado bastante aos da III Conferência suportar os dias dos mais quentes e secos na Capital Federal... O que não faltou no acampamento foi peixe e marisco, frescos ou salgados, em quantidade e variedade - àquela altura do contraste, um atestado de sustentabilidade alimentar e ambiental.
Números oficiais, que incitam a politica de pesca do governo, falam de R$ 3 bilhões movimentados por ano no setor, uma produção em torno de 1,1 milhão de toneladas e aproximadamente 3,5 milhões de trabalhadores... Espera-se que até 2011 o setor gire cerca de R$ 5 bilhões com uma produção média em torno de 1,4 milhão de toneladas e 5 milhões de trabalhadores. Grandiosidades de discursos e intenções e negócios armados. Cessões de águas públicas para a aqüicultura começam a sair do papel. Fazendas de camarão, de mariscos ou de espécies exóticas e de grande interesse mercantil se tornam na prática "donas" das águas, dos territórios pesqueiros em que por séculos comunidades pescaram livremente.
Ousadia política
Mas, o pescador artesanal – em torno de 1 milhão – vai virar trabalhador assalariado? Por certo, é o que se subentende, desde que é o trabalho o fator decisivo da acumulação capitalista. Porque é disso que trata o boom da "aquicultura e pesca" pretendido pelo "governo popular" do Presidente Lula. Para o que é necessário o abandono calculado dos artesanais. No Submédio São Francisco não deu certo: o pescador, como extrativista que é, não se adaptou á função de tratador de peixes em tanques-rede...
Entende-se todo o esforço do governo e adjacentes em inviabilizar a conferência popular paralela. Tentaram - e conseguiram em alguns casos - "comprar" com cestas básicas e dinheiro a lideranças de pescadores, para que desistissem. Chegaram a adiar a data da conferencia oficial para não coincidir com a popular. Fizeram inúmeras gestões, inclusive por via da CNBB, para que o Conselho Pastoral dos Pescadores retrocedesse no apoio aos pescadores. Em vão.
Pura ousadia a conferência dos pescadores artesanais, aquela ousadia que hoje anda faltando em outras frentes da luta popular. Enfrentam o capital ascendente da aquicultura e pesca e seu governo servil. Não são mais uma antiga categoria frágil, fadada à extinção, que se pode engabelar com quaisquer propagandas e compensações. Devem ainda ressoar pela Capital Federal suas palavras de ordem: “No rio e no mar, pescador na luta! No açude e na barragem, pescando a liberdade! Hidronegócio, resistir! Cerca nas águas, derrubar!“ Um grito de esperança no deserto atual da política no planalto e na planície! Ainda há vida nas águas!